Veiculado originalmente em UOL Universa

O assassinato de Moïse Kabagambe, homem congolês, de 24 anos, espancado até a morte no quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em 24 de janeiro, choca boa parte das pessoas que veem as cenas e leem notícias sobre o caso, mas toca ainda mais forte para Kapinga, Claudine e Sagrace. Mulheres da comunidade de refugiados do Congo no Brasil, elas se unem ao luto de Ivana Lay, mãe de Moïse, e à dor após o caso ter mobilizado o país. Ouvidas por Universa, as três repetem as palavras “trauma”, “medo” e tentam achar como traduzir o sentimento de insegurança que as tomou nos últimos dias.

A quantidade de congoleses refugiados soma 1.626 pessoas. Esse é o valor consolidado de janeiro de 2016 até novembro do ano passado, com dados do Comitê e do levantamento Refúgio em Números, do Ministério da Justiça. A divisão por gênero mostra que são mais homens do que mulheres (em 2021, foram 36 pedidos deles e 20 delas).

Fugindo de confrontos étnicos, massacres, perseguições políticas e de atos de violência de grupos armados, congoleses chegam ao Brasil para reconstruírem suas vidas. Aqui, no entanto, encaram o racismo e a xenofobia, explica a jornalista congolesa Claudine Shindany, que mora em São Paulo desde 2014. “A tragédia do menino Moïse se junta a outras e mostra que o Brasil não é esse país acolhedor”. Neste sábado (5) estão previstas ao menos duas manifestações, no Rio de Janeiro e em São Paulo, para que a população e familiares de Moïse peçam agilidade nas investigações do assassinato. Na capital paulista, o ato por justiça por Moïse será em frente ao Masp (Museu de Arte de São Paulo), na avenida Paulista, às 10 horas. Já no Rio, os manifestantes se reúnem no mesmo horário em frente ao quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca, onde o jovem trabalhava e onde foi morto. Leia, a seguir, os depoimentos das mulheres congolesas ouvidas por Universa.

“Minha filha de cinco anos pergunta por que mataram Moïse” 

“Em 2016, eu, meu marido e minha filha mais velha, Joyce, pedimos refúgio do Congo. Fugindo da situação de lá. Agora, a mais velha tem 12 anos e temos mais duas filhas: Clauwine, de 5 anos, e Zoe, de três meses. Hoje, moramos em um predinho no bairro Barros Filho, Zona Norte do Rio de Janeiro, mas aqui não tem segurança. 
Meu marido trabalha na área de logística, em Magé [município da Baixada Fluminense]. Quando ele sai para trabalhar, fico com medo, porque é muito longe. E também porque ele pega o ônibus seis e meia da manhã e só volta oito da noite para casa.

Já cansei de morar aqui e de ver minhas filhas crescendo nesse bairro. É difícil. A mais velha, de 12, estuda em Guadalupe [bairro da Zona Norte do Rio] e toda vez que sai para pegar ônibus fico: ‘Jesus, será que ela vai voltar?’.


“Vejo na TV mães que ficam esperando, esperando, passa o dia e, quando vai ver, a criança já está morta.”


Ligo para ela sempre para perguntar onde ela está, se já pegou o ônibus, se já está vindo. A morte de Moïse deixou a gente muito triste, muito triste. Ele vinha aqui no bairro, porque tinha um tio aqui. Lá na África, a gente chama todo mundo de tio e tia. Moïse é nosso irmão. Minha filha de cinco anos soube que ele morreu e perguntou: ‘Por que mataram Moïse?’. Eu vou falar o quê?.

A gente gosta do Brasil porque mora aqui, mas se o Governo ajudasse seria melhor. E a gente sofre preconceito, sim, até hoje: sempre olham quando a gente entra no supermercado. Não falam nada, mas olham”. Kapinga Chana Maguy, trancista, mora no Rio de Janeiro desde 2016.

“Ser refugiada e mulher, no Brasil, é muito difícil” 


“Ser refugiada e ser mulher é muito difícil. Você sai de um trauma, tentando uma nova vida, e entra em outro trauma. A lei do Brasil garante asilo humanitário, sermos acolhidos para recomeçar dignamente, mas, na prática, infelizmente não é o que acontece.  A tragédia do menino Moïse se junta a outras e mostra que o Brasil não é esse país acolhedor.

Por vezes, temos um estudo de engenheiro, advogado, jornalista, mas acabamos trabalhando em algo que não é parecido com isso. E isso faz parte da discriminação que vivemos, além do racismo do dia a dia.

A moradia é algo complicado, porque somos jogados nas periferias, nas favelas, ocupações e pensões. E a discriminação acontece nas ruas, no transporte, na escola, no hospital, no trabalho.


Atuo no setor de regularização migratória do CAMI – Centro de Apoio e Pastoral do Migrante, e outro dia uma irmã que trabalha como faxineira, comentou que sempre davam mais trabalho a ela do que as funcionárias. Ela queria até ir para o Brás, vender roupa em banca, porque estava cansada daquilo. Ainda ouviu de uma colega: ‘Você é africana, é mais forte’.

“Vamos ter as manifestações por causa de Moïse, mas não sei se os brasileiros entenderam o que é ser um refugiado do Congo. Saíram muitas publicações em que deixaram comentários do tipo ‘Por que fugiu da fome e veio para o Brasil?’.
Mas, vamos fazer essa mobilização, sim. Já chega, né? 


Vim para São Paulo em 2014, com meu filho ainda pequeno. E digo uma coisa: no meu país não existe racismo. Eu trabalhava na área da comunicação do Unicef lá, e era uma equipe multicultural. Quando cheguei aqui e vi que acontecia, me assustei um pouco. Aqui tem o problema do racismo do dia a dia, também vivido pelos negros brasileiros, há a xenofobia. E também o machismo” Claudine Shindany, jornalista e ativista de direitos humanos, mora em São Paulo desde 2014.

“Neste momento, não sei se gosto do Brasil. Como mãe, tenho medo”


“Cheguei ao Brasil em 2015, com minha filha, Joyce. O estresse da situação para atravessarmos o Congo foi tão grande que, para você ter ideia, tomo remédio até hoje para pressão alta, porque fiquei traumatizada com a situação. Na vinda, estava grávida. Quando meu bebê nasceu, ele estava com o ‘coração doendo’. E o leite entrava direto no pulmão quando eu amamentava. Passamos por uma situação muito difícil, ficamos na UTI por um mês, fomos para casa, mas ele não conseguia ficar sem sonda. Ao fazer cinco meses, pegou pneumonia e acabou falecendo.


Em 2018, ganhei outro bebêzinho. Hoje, a Joyce tem 8 anos e Josué, 3 anos. Apesar do caminho difícil, fui bem recebida no Brasil porque tive apoio do Cáritas, Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio, no Rio de Janeiro. Assim, vivemos com todos os direitos, como se fôssemos brasileiros, com toda a documentação.

No Cáritas, falei que era cantora e, então, passei a fazer shows a percussionista Lan Lahn. Nesse meio, descobri muitas pessoas boas. Até que veio a pandemia. Como sou costureira e sei trançar cabelo, não quis ficar sem nada, sem trabalhar. Vim para o bairro de Madureira para ser trancista. Ivana, a mãe de Moïse é nossa colega de fazer trança aqui. 
Fiquei sabendo da notícia antes de a mãe dele saber. Os amigos avisaram, disseram que ele tinha morrido. Como? Todo mundo ficou chocado.

“O menino era saudável, educado, educado mesmo. Não o via faltando respeito com alguém. Nunca ouvi a voz dele para insultar ninguém. Não sei o que aconteceu. Chocou a gente, porque ninguém gosta de ver quando um filho morre antes dos pais. Peço a Deus a graça. Estou chocada com essa história. Me doeu muito. Ainda mais porque vi o vídeo; não consigo descrever o que deu nas pessoas para que tivessem esse nível de maldade.


Gosto muito do Brasil, mas, neste exato momento, não sei. Fiquei com medo. Já fiquei traumatizada no meu país… Meu bebê Josué é levado. É capaz de ele chegar na escola ou em algum lugar para ser espancado? Como mãe, estou com medo. Estou com medo de viver.” Sagrace Menga, cantora e trancista, mora no Rio de Janeiro desde 2015.

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